O segredo da alegria de João XXIII (1)
Bento Domingues. Frade da Ordem dos Dominicanos, teólogo, professor e escritor.
1. Para certos frequentadores dos textos do Novo Testamento não lhes basta o simples prazer de os ler. Interessa-lhes o que neles podem encontrar para a orientação da sua vida pessoal, familiar e social. Querem, talvez, descobrir o programa de Jesus de Nazaré e o que dele podem tirar para resolver os problemas do seu dia-a-dia. Não me parece que seja fácil satisfazer este pendor pragmático.
Se quiserem colher, nos Evangelhos, um programa de governo, seja para que país for, ficarão decepcionados. Jesus, no sector da agricultura, manifestou que conhecia bem as condições e técnicas para as boas sementeiras e colheitas. Mas uma reforma agrária não se faz recomendando: olhai os lírios do campo e as aves do céu. Quando aborda a questão dos trabalhadores para a vinha, tem uma política de salários que prima pelo arbitrário e que qualquer central sindical teria de combater. No sector das pescas, provocou iniciativas que multiplicaram o peixe, mas não deixou a receita para garantir futuras experiências de sucesso. Além disso, até retirou barcos e pescadores à sua utilidade normal, fazendo dos pescadores pregadores. Para a montagem de uma indústria próspera, como podia ser a da construção e a dos têxteis, não foi boa ideia recomendar que não se preocupassem com o dia de amanhã. No sector de comércio e negócios, tinha uma teoria que levaria tudo à falência: não encoraja nem exportações nem consumo interno. A atitude perante o dinheiro e a riqueza provocava a troça dos fariseus. A saúde e a assistência foram a sua preocupação permanente. No entanto, não criou uma rede hospitalar, nem lares de terceira idade. Resolvia tudo com milagres. Rejeitou, liminarmente, qualquer programa político, tanto para Si como para os discípulos. Seria de supor que, pelo menos, no plano religioso, se apresentasse como um grande especialista em organizar lugares de culto, peregrinações e cerimoniais que se impusessem como a melhor alternativa para o contacto com o divino. E nada.
2. Creio que Jesus não veio resolver os problemas das áreas da competência humana, nem substituir a nossa responsabilidad e histórica. Interessa-Lhe apenas fazer de nós criaturas novas, mediante a graça da conversão permanente. Compete-nos resolver os nossos problemas, por nossa conta e risco, através das ciências, das técnicas, das artes e das sabedorias que formos inventando ou descobrindo.
É certo que não deixou nada escrito, não encarregou ninguém de escrever e os textos cristãos não impõem uma interpretação única. Remetem para a participação na realidade viva de Cristo.
Os cristãos e as suas comunidades, como todos os grupos humanos, nascem e desenvolvem-se numa história marcada por tradições, mas sem estarem condenados a repeti-las. O Espírito de Pentecostes, que celebrámos no Domingo passado, é fonte de inovação segundo a pluralidade de carismas pessoais e de grupo.
3. O Papa João XXIII é, neste sentido, um caso muito especial. Não basta dizer que nasceu pobre em Sotto il Monte (província de Bérgamo, Itália) a 25 de Novembro de 1881. Que foi padre, bispo e cardeal de Veneza, núncio apostólico na Bulgária, na Turquia e em França, eleito papa a 28 de Outubro de 1958 e que morreu pobre, em Roma, a 3 de Junho de 1963. Nem basta acrescentar que, de forma improvável e imprevisível, convocou o Concílio Vaticano II (1962-65), o maior acontecimento da Igreja no século XX. Infelizmente, não assistiu ao seu desenvolvimento até ao fim.
Os eclesiásticos gostam todos de deixar uma obra na qual se possam rever. Os papas do Renascimento não eram todos uns santos, mas deixaram marcas inapagáveis que justificam todas as formas de turismo.
Angelo Giuseppe Roncalli era o terceiro filho de uma família pobre e numerosa. Nem ele nem a família lucraram com o seu percurso eclesiástico. Várias vezes confessou que estava bem assim. Sem nunca esquecer a sua aldeia, a sua diocese, os países em que trabalhou, do Oriente e do Ocidente, os seus familiares, a sua verdadeira ambição era que o mundo inteiro fosse a sua família. Em 1959, depois de ter sido eleito papa, escreveu no seu Diário íntimo: “desde o dia em que o Senhor me chamou, miserável como sou, para este grande serviço, já não me sinto pertencer a nada de particular na vida: família, pátria terrena, nação, orientações particulares em matéria de estudos, de projectos, por melhores que sejam. Agora, mais do que nunca, apenas me reconheço como indigno servo dos servos de Deus. O mundo inteiro constitui a minha família. Este sentido de pertença universal deve dar vigor e vivacidade ao meu espírito, ao meu coração. (…) Estou, sobretudo, grato ao Senhor pelo temperamento que me deu, que me preserva de incómodas inquietações e de desânimos (…) O bom acolhimento à minha pobre pessoa, imediatamente dispensado e mantido por quantos de mim se aproximam, é sempre motivo de surpresa. (…) Devemos estar, sobretudo, revestidos de uma habitual prontidão às surpresas do Senhor.”
Ontem, o Movimento Nós Somos Igreja promoveu, no Convento de S. Domingos, um colóquio sobre esta figura da Igreja do futuro. A ela voltaremos no próximo Domingo.
Público, 25 de maio de 2013
O segredo da alegria de João XXIII (2)
Bento Domingues. Frade da Ordem dos Dominicanos, teólogo, professor e escritor.
1. É próprio do moralismo destilar maldições sobre as mais autênticas alegrias humanas. Instalou-se, há muitos séculos, em certas correntes do cristianismo e reaparece, periodicamente, como se fosse a sua versão mais genuína pelo seu “desprezo do mundo”. É, na verdade, uma importação estranha à poética pregação de Cristo que respira, em cada gesto e em cada parábola, o gosto da plenitude da vida (Jo 20,30-31).
A evasão gnóstica foi denunciada por S. João ao falar de Cristo como Aquele que ouvimos, vimos com os nossos olhos e nossas mãos apalparam da Palavra da vida (…) E isto vos escrevemos para que a nossa alegria seja completa (1 Jo 1, 1-4). A pregação e a intervenção da Igreja só valem na medida em que forem Evangelho, isto é, revelação de que, da parte de Deus, todos somos amados, mas com um encargo: amai-vos uns aos outros (Jo 15, 12-17).
Dir-se-á que qualquer um, em dia sim, poderia escrever algo parecido. Esqueci, nas transcrições referidas, uma frase que perturba essa veleidade: ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos. Não fica por aqui: sois meus amigos se esta for a vossa prática. Se os bons sentimentos não chegam para a boa literatura, também não são as boas intenções que nos salvam.
2. João XXIII agradeceu sempre a Deus ter nascido com bom feitio, mas nunca se contentou com o seu contagiante bom humor, testemunhado nos fioretti, que sobre ele foram publicados. Recorde-se a resposta que deu a quem lhe perguntou quantas pessoas trabalhavam no Vaticano: mais ou menos metade.
No Resumo das grandes graças feitas a quem tem pouca estima por si próprio, mas recebe as boas inspirações e as aplica com humildade e confiança, podemos ler:
«Primeira Graça: Aceitar com simplicidade e honra o peso do pontificado, com a alegria de poder dizer que nada fiz para o provocar, absolutamente nada; antes, com a preocupação diligente e consciente de não ter chamado a atenção sobre a minha pessoa; muito contente, durante as variações do Conclave, quando via alguma possibilidade de diminuir no meu horizonte e voltar-me para outras pessoas, verdadeiramente digníssimas e venerandas, em minha opinião.
Segunda Graça: Surgirem, no meu espírito, como simples e de execução imediata, algumas ideias, nada complexas, pelo contrário bastante simples, mas de vasto alcance e responsabilidad e em relação ao futuro e com sucesso imediato. Exemplos da expressão: colher as boas inspirações do Senhor, “simpliciter et confidenter”!
Sem ter pensado nisso antes, terem saído de mim, numa primeira conversa com o meu Secretário de Estado, a 20 de Janeiro de 1959, palavras sobre o Concílio Ecuménico, o Sínodo Diocesano e a remodelação do Código de Direito Canónico, contrariamente a todas as minhas suposições ou pensamentos sobre este ponto.
O primeiro a ficar surpreendido com esta minha proposta fui eu próprio, sem que alguma vez me tivesse dado indicações a este respeito.
E dizer que tudo, depois, me pareceu tão natural no seu imediato e continuo desenrolar!
Depois de três anos de preparação laboriosa, é certo, mas também feliz e tranquila, eis-me agora nas faldas da Santa Montanha.
Que o Senhor nos ampare para conduzirmos tudo a bom termo».
3. João XXIII poderia dizer, como o poeta: o Concílio aconteceu-me. Numa nota escrita em 1959 pode ler-se: “Este é o mistério da minha vida. Não procureis outra explicação. Repeti sempre a frase de S Gregório Nanzianzeno: voluntas tua pax nostra”.
Ao longo de toda a sua vida, como testemunha o seu Diário, o que procurou, em primeiro lugar, foi cultivar a humildade para estar disponível, livre, para o que Deus quisesse fazer dele. Cada passo nesta direcção era um motivo de alegria. Ele gostava da sua família, gostou da vida no seminário, de ser padre, de ser bispo, de ser papa e de descobrir que tudo foram etapas para chegar ao ponto de sentir que o mundo inteiro era a sua família. Nessa altura, sentiu-se na onda de Deus. Não era uma conquista ideológica ou teológica, mas o fruto de ter amado todos aqueles com quem viveu e a quem foi enviado: Bulgária, Turquia, Grécia, França. Descobriu, não só outras faces da Igreja Católica, mas também a Igreja Ortodoxa, o Islão e o mundo laico. Foi um acolhimento transformador, dele próprio e dos outros. Tornou-se um pontífice, uma pessoa que faz pontes, que põe mundos em contacto.
Ao ler o Diário de João XXIII parece que tudo lhe acontece sem premeditação, mas não sem método: “o esforço vigilante de reduzir tudo, princípios, preocupações, posições, trabalho, ao máximo de simplicidade e de calma; o podar atentamente a minha vida daquilo que apenas é folhagem inútil e gavinha e dirigir-me à verdade, à justiça e à caridade, sobretudo à caridade. Qualquer outro sistema não é mais do que atitude e busca de afirmação pessoal que se trai e se torna embaraçante e ridícula. (…) Deixo aos outros a superabundância da astúcia e da chamada perícia diplomática e continuo a contentar-me com a minha bonomia e simplicidade de sentimentos, de palavra e de trato. O resultado final é sempre favorável a quem permanece fiel à doutrina e aos exemplos do Senhor”.
Público, 10.06.2013
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